O Historiador
Tudo que Laércio Cintra queria naquele fim de expediente era um banho quente e beijar as duas mulheres de sua vida. Para aumentar a ansiedade do historiador pelo retorno ao lar, Aninha teve seu primeiro dia de aula naquela tarde; os olhinhos chorosos da menina quando ela entrou na van escolar ainda arrancavam lágrimas dos olhos do pai. O telefone tocou. O aparelho vibrava no mesmo timbre estridente de seus ancestrais. Como historiador, Laércio preferiu um modelo menos “moderno”, como os novos sem fio que surgiam naquele 2001, o primeiro ano de um milênio novo e cheio de enigmas para todos.
Laércio o tirou do gancho. Ressabiado. O expediente havia terminado havia meia-hora. Seus sócios, Marlene e Jair já haviam saído, cabendo a Laércio fechar tudo…
— Alô. HP LTDA, com quem eu falo? — Laércio preferia o bom e velho “alô”, simples e direto, porém Marlene achou por bem dar um profissionalismo maior. Por isso, abreviou História & Patrimônio para “HP” e acrescentou LTDA, para mostrar maior seriedade à empresa criada há menos de dois meses.
— Que bom que ainda estão abertos — ressoou apressadamente a voz do outro lado da linha. — Temia que já estivessem fechados. — Infelizmente ainda estou aqui, lamentou Laércio em um suspiro reflexivo. — Eu sou o prefeito Cláudio da Chapada dos Guimarães. Teriam interesse em prestar assistência aqui no município para nós?
— Não é necessário licitação para isso?
— Geralmente sim. Mas todas as empresas que contatamos se mostraram pouco interessadas pelo nosso serviço.
— Posso saber que serviço seria?
— Precisamos avaliar uma rota por onde pretendemos abrir uma estrada. Parece que grupos de proteção ao índio estão querendo embargar a obra. Por isso preciso de uma avaliação profissional, não quero ter que parar tudo depois de começar…
Laércio chegou em casa uma hora e meia além do planejado. Após ligar para seus sócios e confirmar, retornou para o prefeito Cláudio da Chapada dos Guimarães para aceitar o trabalho. Aninha brincava com blocos de montar, abandonando sua obra para abraçar o pai, assim que o viu atravessar a porta. A família aproveitou ao máximo a presença um do outro aquela noite, visto que Laércio, Marlene e Jair viajaram naquela madrugada para a Chapada dos Guimarães.
O Vectra 92 do historiador encostou em frente à prefeitura de Chapada dos Guimarães pouco depois das nove da manhã, mesmo precisando esperar a chegada do prefeito e a assinatura de alguns papeis, antes das 11 já estavam no local reivindicado pelas comunidades indígenas.
— Por que não dá a volta? — perguntou Laércio descendo em direção ao vale pela picada aberta pelos trabalhadores que monitoravam a área há algum tempo.
— Vamos dar, caso seja necessário — respondeu José Arnaldo, o engenheiro da prefeitura responsável pela obra. — O problema que não sabemos para onde. Por isso você está aqui.
O cerrado naquela parte do município parecia intacto, o capim alto, as árvores de casca grossa, as palmeiras espinhentas. Como ainda chovia naquela época, tudo continuava verde. Apesar disso, Laércio notou as marcas de queimada.
— Por que aqui? Por que agora? — as perguntas de Marlene faziam sentido, e claro que já tinham sido feitas muitas vezes, pois José Arnaldo tinha a resposta na ponta da língua.
— Por causa do transporte escolar — respondeu o engenheiro prontamente. — Uma nova agrovila foi criada uns 15 quilômetros ao norte, a rodovia chega lá, mas é o dobro de distância se cortarmos por aqui…
— Acho que por aqui vocês não vão passar — disse Jair abaixando-se diante de uma pedra. — Está vendo essas marcas aqui? — continuou ele após fotografá-la ainda no chão. Depois a levantou e mostrou ao engenheiro.
— Para mim é uma pedra como qualquer outra — decretou o funcionário da prefeitura de Chapada dos Guimarães dando de ombros.
— Talvez seja — revelou o geólogo —, mas a natureza não lapida pedras, o ser humano sim.
Aquele primeiro local de pesquisa não era muito longe do centro da cidade, possibilitando que Laércio, Marlene e Jair pudessem voltar para almoçar. O que o fizeram pouco antes das 13 da tarde. Preferiram ficar um pouco mais, queriam entender melhor no que haviam se metido sem o olhar inquisidor de José Arnaldo. Era obvio que aquela área já foi habitada por grupos humanos, o problema era definir a idade e o quanto de vestígios haveria para ser preservado.
Aproveitaram a hora do almoço para procurarem o hotel. Como sempre faziam para economizar, escolheram um quarto com uma cama de casal e uma de solteiro, já que o hotel não tinha um aposento com três de solteiro. Acreditavam que terminariam a pesquisa até sexta, por isso não alugaram o quarto além dos quatro dias que esperavam ficar no município.
Ao retornarem para o sítio, foram acompanhados por cinco funcionários da Secretaria de Infraestrutura, designados para os assistirem.
O chefe dos funcionários da prefeitura era um homem baixo e barrigudo que atendia pelo nome de Rodolfo França, mas todos o chamavam de França. Logo entenderiam que aquele homem estava lá apenas para fiscalizar os pesquisadores, visto que pouco se envolvia com os trabalhos, fosse de capinar determinada área ou recolher algum material de interesse ao estudo.
Novamente os funcionários públicos voltaram para a cidade pouco antes das 17, a fim de finalizarem o expediente. Laércio e equipe, no entanto, somente deixariam a área quando já estava escuro demais para continuarem.
Grilos davam a trilha sonora e vaga-lumes um espetáculo luminoso à parte que somente quem já se aventurou ou vive além das luzes citadinas teve o prazer de acompanhar. Mas foi uma luz específica que chamou a atenção dos pesquisadores. Ela movia-se muito estável para ser alguém com uma lanterna. Muito menos acreditavam que um motociclista faria a loucura de pilotar em meio ao mato fechado.
Lentamente, o facho luminoso circundava os pesquisadores, como se os estudasse. Quando, a menos de 30 passos deles, ela se desfez em uma explosão de luz, tão belíssima quanto assustadora para seus espectadores. O grupo de cientistas voltou para a cidade tentando, em vão, encontrar uma explicação racional para o que presenciaram.
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