O Repórter
Quando Lázaro da Silva se levantou, Tom já estava debruçado sobre as anotações de seu anfitrião. Das 35 páginas, o jornalista aposentado conferia a 26. Não querendo incomodar o trabalho de seu antigo mentor, Lázaro decidiu seguir para a cozinha. Voltou para junto de Tom Gomes meia-hora depois com ovos cozidos e uma xícara fumegante.
— O que descobriu? — perguntou o proprietário do Tangará Informa colocando a bandeja do café da manhã de Tom diante dele.
— Que você é um péssimo anfitrião — resmungou o velho repórter torcendo o nariz. — Se fosse pra tomar chá, eu ficava no asilo.
— Quando o Fabrício chegar ele prepara o café. Mas se não quer, eu levo embora…
— Deixa aí — grunhiu Tom, contrariado. — Que espécie de hóspede eu seria?
— Preciso atualizar o site — informou Lázaro sentando-se à escrivaninha ao lado da de Tom. — Desculpa ter que dividir o escritório comigo, sei que prefere seu espaço particular…
— Acha que é a minha primeira vez, garoto? — cortou-o o velho repórter. — Pode atualizar seu jornal. Tomei a liberdade para adicionar umas pautas novas se não se importar. Não pode sobreviver apenas de BOs e matérias frias copiadas de outros lugares, pode?
Lázaro nada respondeu. Acomodou-se em sua cadeira e conferiu as dicas dadas por seu mentor. Tom havia destrinchado os boletins da polícia do dia anterior e destacou dois que mereciam uma apuração mais cuidadosa. Assim como um ou outro caso que encontrou no Instagram e outros sites de notícias da cidade. Tom sempre dizia que a concorrência era um excelente informante, só se precisava transformar o que eles tinham em algo melhor.
O escritório de Lázaro não era muito grande, apesar de comportar três escrivaninhas. A principal, cedida a Tom, era de madeira, cedro-rosa envernizado e polido, feito sob encomenda. Sobre ela havia um retrato de sua família quando os dois filhos e a filha eram crianças, e ele ainda exibia seu topete natural, também mantinha alguns papéis virgens para rascunho e pastas recém-utilizadas em alguma matéria. Já as outras duas mesas, de compensado cinza, uma ele reservava para a impressora e computador, a outra para ser usada sempre que contratava algum estagiário.
Fabrício Gama, o enfermeiro de Tom Gomes, chegou pouco antes das sete da manhã, mas apenas veio ver como estava seu septuagenário paciente uma hora e meia depois com um esfigmomanômetro digital e uma xícara de café. Aferiu a pressão arterial do idoso e lhe serviu a bebida quente. Tentou puxar assunto, porém os dois repórteres estavam concentrados demais para lhe dar atenção.
— Se precisarem de mim, estarei na cozinha — avisou o rapaz, sentindo-se isolado. — Volto às dez com seus remédios.
A última conversa mais humana que Fabrício teria naquela casa saiu para seu trabalho na Universidade Estadual de Mato Grosso pouco antes de ele entrar no escritório para ver Tom. Conversaram por uns quinze minutos, quando decidiram o cardápio; como Tom precisava de uma dieta especial, ela decidiu que todos na casa comeriam de acordo com as necessidades de seu hóspede. Coube ao enfermeiro repassar para Maria Rita, a cozinheira, o que poderia e o que deveria ser evitado nas refeições a partir daquele dia.
— Glória — disse Lázaro assim que a esposa atendeu — pode me conseguir um estagiário o quanto antes? As ideias de Tom são boas, mas sozinho não vou dar conta.
— Vai precisar de mais anunciantes, Lázaro — repreendeu-o Glória em um suspiro. — Já teve que contratar o Fabrício. Mesmo eu te ajudando com a metade, ainda temos que manter a Maria Rita e a Júlia para que a casa não pare.
— O que eu faria sem você, meu amor? — flertou o jornalista, também para amenizar a irritação de Glória. Ela já sugerira outras vezes de manter a casa apenas com seu honorário de professora-doutora, mas ele se recusou todas as vezes, agora não poderia pedir que ela o fizesse, não mais. — Já tenho algo em mente. Com o Tom aqui, com certeza vai chover anunciantes.
Na manhã anterior, quando trouxera Tom para casa, antes mesmo de apresentá-lo ao aposento que iria hospedá-lo nos próximos dias, levou-o para o escritório. Sobre a mesa de cedro-rosa estavam duas pastas sanfonadas, largas e abarrotadas de documentos, fotos e até pen-drives sobre o dito suicídio de Luiz da Gama Lins, vulgo Luiz da Gasolina.
O anfitrião colocou à frente do antigo mentor um notebook e sorriu diante do olhar inquisidor de Tom. O velho repórter nunca foi muito fã de usar computadores, mesmo assim sabia manuseá-lo com perfeição e muito melhor que muitos adolescentes de hoje em dia que mal sabem usar os smartphones que ganham ainda na infância para deixarem os pais em paz.
— O que vou fazer com isso? — perguntou Tom sarcasticamente, fingindo ignorância sobre o aparelho diante de si.
— Esqueceu como usá-lo? — provocou Lázaro, lembrando de suas discussões quando eles se conheceram, quando os celulares ainda eram chamados de tijolões e se pareciam com rádios personalizados. O editor do Tribuna da Serra não queria acreditar que um repórter no futuro seria refém da tecnologia. Bater pernas sempre deveria ser o principal equipamento de um bom jornalista. Os sentidos, as melhores formas de identificar uma boa história. Computadores até poderiam substituir a máquina de escrever, mas nunca o homem.
Lázaro até pensou em reaver o velho debate, diante do silêncio do velho, mas preferiu abrir uma das pastas e pegar dois pen-drives e colocá-los sobre o notebook.
— Pode usar para ver os vídeos gravados aqui.
— Garoto! — chamou Tom pouco depois de Fabrício sair satisfeito pelo paciente tomar todos os remédios das 10 da manhã. — Você chegou a ver todas as gravações?
— Algumas — respondeu Lázaro abandonando o computador no meio da atualização de uma matéria e correu até a mesa de Tom. — Por quê?
— Dá uma olhada nisso!
A filmagem mostrava dois homens discutindo em uma calçada. O mais velho era gordo e suava dentro da camisa cara abotoada até o colarinho. O outro embora mais novo, não era menos largo. Infelizmente o vídeo não tinha som, era a gravação de uma câmera de segurança.
— Parece que é em frente à Câmara de Vereadores — comentou Lázaro. — Quem é o rapaz com o Luiz?
— Não sei — disse Tom pensativo. — Seja lá quem for, está bem bravo com nosso ex-prefeito.
Os dois encararam a tela do notebook por algum tempo, vendo e revendo aquela discussão. Tentavam ler os lábios, identificar suas reações. O pouco que conseguissem descobrir poderia deixá-los mais perto da história de suas vidas.
— Quem te deu essas filmagens, Lázaro? — perguntou Tom por fim, virando-se para o anfitrião.
— Um pouco aqui, um pouco ali, algumas eu mesmo consegui… Sabe como é?
— Precisamos falar com cada um — concluiu o velho repórter. — Mesmo que não digam nada que já não saibamos, não custa tentar.
— Vou fazer umas ligações…
— Não, não vai! — afirmou Tom, impedindo que Lázaro tirasse o celular do bolso. — Se avisar, eles vão inventar histórias, se chegarmos de surpresa, suas reações vão dizer muita coisa…
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