Do trágico ao cômico: o Brasil como palco da literatura dramatúrgica

Teatro em Palavras: quando a literatura encontra a cena e resiste no tempo – Parte 2

O tempo passou, mas o palco nunca ficou vazio.

A cortina caiu muitas vezes — mas sempre se ergueu de novo.

E se o teatro nasceu com os deuses, foi com os homens e mulheres da margem que ele aprendeu a gritar.

O texto dramático brasileiro carrega os estilhaços de um país que ri para não chorar.
Carrega também a beleza dos mitos populares, os delírios da paixão, os cacos da moral, as sombras de uma sociedade que se esconde atrás de cortinas. No Brasil, o teatro literário tem muitos nomes — mas é a pluralidade que dá voz à cena.

Nelson Rodrigues: a dor como estética

Se Eurípedes lançou Medeia contra o mundo, Nelson Rodrigues fez do cotidiano carioca sua tragédia.

Em A Mulher sem Pecado (1941), sua peça de estreia, estão os primeiros sinais de sua dramaturgia visceral: o ciúme como vício, o desejo como abismo, a família como campo de batalha íntima.

Nelson é o pai da tragédia moderna brasileira, onde o herói não é nobre, mas suburbano; onde o pecado não é um desvio — é a essência. Suas obras desmontam a hipocrisia burguesa, desnudam neuroses escondidas sob a máscara da normalidade. Lê-lo é visitar um Brasil escondido atrás de cortinas rendadas.Vestido de Noiva; Bonitinha, mas Ordinária; Álbum de Família; Senhora dos Afogados — em todas elas, o texto de Nelson vibra como literatura que investiga a alma.

É teatro que se lê como romance psicológico. Cada peça de Nelson é uma viagem ao subterrâneo da alma brasileira. Seus personagens não se contentam em existir — eles suplicam, mentem, traem, blasfemam, amam errado, amam demais. Estão sempre no limite do suportável. Nelson não descreve o conflito: ele o inscreve na fala, na hesitação, no delírio, no gesto rubrico.

É rubrica que respira, fala que sangra. Há um silêncio quase musical em suas didascálias. Um tipo de pausa que não apenas orienta a cena, mas dá voz ao indizível.
Seus textos carregam eco e tensão, como se o autor sussurrasse ao diretor: “aqui, o mundo está prestes a desabar”. É teatro, mas também é literatura em estado de febre. E Nelson escreve como quem ouve vozes.

Vozes reais, de vizinhos, de suburbanos, de tias moralistas e filhos que sabem demais. Ele empresta ao teatro a psicologia dos romances de Dostoiévski e a devassidão dos folhetins de banca — e ainda assim, cria algo único: o trágico carioca; o indecente divino; o drama com sotaque de esquina.

Nelson, muitas vezes mal interpretado, foi antes de tudo um dramaturgo da linguagem. Suas frases curtas, repetitivas, obsessivas — quase litúrgicas — compõem uma orquestra dissonante de sentimentos. Um autor que entendeu que o teatro começa e termina no verbo.

Ariano Suassuna: o riso que reza, o riso que fere

Se Nelson encena a angústia urbana, Ariano Suassuna dramatiza o Brasil profundo — e o faz com uma genialidade que funde o riso e a fé, a oralidade e o barroco, a crítica e o encantamento.

Auto da Compadecida (1955) é uma das obras mais populares e literariamente densas do teatro nacional. Inspirado nos autos medievais e no cordel nordestino, Ariano constrói uma narrativa que é farsa, epopeia, crítica social e ato de fé. João Grilo e Chicó não são apenas personagens cômicos — são tipos arquetípicos, espelhos da resistência popular.

A obra discute ética, justiça e desigualdade com leveza e lirismo. Não à toa, o texto sobrevive sem encenação: é lido em clubes, encenado mentalmente, estudado em escolas. É palavra que se sustenta na própria força.Já em O Rico Avarento, Suassuna expõe a ganância e o egoísmo em uma fábula moral que, como ele mesmo dizia, não perde a graça — mas também não poupa o leitor.
A peça, inspirada no teatro religioso e popular, transforma o riso em desconforto.
Por trás da comédia está a crítica: a caridade interesseira, a fé domesticada, a miséria ignorada. O texto é breve, mas certeiro. É um espelho disfarçado de anedota — e Suassuna sabia: quem ri também se reconhece.

Suassuna é o dramaturgo da poética da simplicidade. Seu texto é canto, reza, sátira. É uma forma de dizer ao Brasil que sua cultura popular não é menor — é clássica em sua grandeza.

Maria Shu: poesia marginal, cena subversiva

Do barroco nordestino à estética queer contemporânea, Maria Shu representa uma virada radical no teatro brasileiro: um teatro que não aceita moldes, nem palcos convencionais.

Sua obra Cabaré Stravaganza rompe com a linearidade e desafia o leitor/espectador a reconfigurar seus próprios filtros sensoriais. É manifesto, é rito, é transgressão. Maria escreve com o corpo — e para o corpo.

Sua dramaturgia é feita de fragmentos, de imagens, de pulsações. O texto é desdobrável, líquido, instável. Ainda assim, é literatura. Com forte presença da poesia marginal, da performance, da linguagem queer e da estética do grotesco, Shu inscreve na cena brasileira uma dramaturgia de resistência e reinvenção. Ler Maria Shu é ser deslocado. É enfrentar o incômodo da linguagem não binária. É permitir-se não entender tudo — mas sentir cada palavra com a pele.

Ela representa um teatro-escrita das bordas, onde a exclusão vira estética, e o risco vira forma.

Os Melhores do Mundo: quando o riso é literatura

E se o riso popular também pode ser literatura? Os Melhores do Mundo, grupo teatral nascido em Brasília nos anos 1990, é prova disso. Com humor escrachado, textos ágeis e crítica social embutida no nonsense, a trupe construiu um repertório que atravessa palcos e gerações.

Hermanoteu na Terra de Godah é mais do que uma paródia bíblica.
É um tratado sobre o absurdo da obediência cega, das instituições religiosas e da moral de conveniência. O texto, lido no papel, mantém o ritmo, a ironia e a força subversiva. É comédia com consistência dramatúrgica.

Notícias Populares mergulha no grotesco do jornalismo sensacionalista, convertendo manchetes absurdas em micropeças cômicas que beiram o surreal — mas não escapam do real.

Sexo – A Comédia, Dingou Béus, Os Melhores do Mundo Futebol Clube — cada espetáculo revela um Brasil tragicômico, com personagens que escancaram os vícios nacionais.

O grupo soube traduzir o espírito do teatro de revista, do besteirol oitentista e da sátira política, com uma escrita que funciona fora do palco. Seus roteiros são roteiros literários — vivos, críticos, estruturados.Os Melhores do Mundo democratizam a dramaturgia com leveza, mas sem perder profundidade.

Literatura que não cabe apenas no papel

O teatro brasileiro é múltiplo porque o Brasil também é. E quando nos debruçamos sobre seus textos, encontramos mais do que falas e rubricas. Encontramos o país.

Encontramos o riso escondido no choro. A denúncia disfarçada de piada. A poesia que anda com os pés descalços. Ler teatro brasileiro é entrar numa casa com janelas abertas, onde o passado e o presente dividem o palco. Onde os mitos e as margens falam a mesma língua — e nos dizem que a literatura, quando encarnada, ainda pode transformar.

Não perca nada!

Na Parte 1 da nossa série especial sobre o teatro como literatura, revisitamos as origens do texto dramático como forma literária, com destaque para Eurípedes e suas obras Medeia e As Troianas — tragédias que resistem ao tempo e revelam a força da palavra como corpo, denúncia e poesia.

Na terceira e última parte da nossa série especial sobre o teatro como literatura, vamos refletir sobre o papel do texto teatral na educação, na leitura e na resistência cultural.
Falaremos do teatro nas escolas, nas bibliotecas, nos clubes de leitura. E encerraremos com uma ode dramática ao teatro como sobrevivência da palavra.

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