Capítulo 2: O Sítio

O Historiador

Pretendia, e havia prometido, ligar para casa na noite anterior. No entanto, o estranho fenômeno que presenciaram no local do Estudo de Impacto Histórico e Cultural acabou atrasando os planos. Devido a isso, decidiram que naquela manhã iriam estabelecer a extensão do sítio. Como a reunião entre os três terminou somente depois da meia-noite, o historiador precisou adiar a ligação para falar com a filha de cinco anos e a esposa.

— Papai! — comemorou Aninha ao ouvir a voz de Laércio. — Quando você volta para casa? Estou com saudades.

— Eu sei, amor — conseguiu dizer, lágrimas insistentes lutando para escapar por sua face. — Como foi a aula ontem, se divertiu?

— Eu… eu…

— Ela não foi, Laércio — interveio Raquel com o rosto encostado ao da filha, compartilhando o fone. — Ficou embirrada porque o pai dela saiu sem falar com ela.

— Por que não me acordou, papai? — protestou ela, aproveitando-se da deixa preparada pela mãe. — Fiquei feito boba esperando você…

— Mamãe não disse que precisei viajar?

— Disse, mas…

— Então pronto. Promete que vai obedecer a mamãe? — Aninha ficou em silêncio, sua respiração indicava um princípio de choro. — Papai não está bravo com você, amor, mas precisa prometer que vai fazer tudo que a mamãe pedir. Promete?

— Tá bom…

— Agora deixa o papai falar com a mamãe. Eu ligo hoje à noite para saber como foi seu dia. Tudo bem?

— Tchau, papai…

Falar com a esposa e, principalmente, Aninha, devolveu a Laércio a segurança e coragem necessárias para dar continuidade ao seu trabalho, embora longe das duas meninas de sua vida. Voltou para o quarto e terminou de planejar, ao lado dos companheiros, o cronograma do dia.

Enquanto Marlene passaria o dia todo na biblioteca e arquivo público municipal, Laércio e Jair voltaram para a área do EIHC e começaram a demarcar o sítio. Apesar de ambos os estudiosos possuírem mestrados em arqueologia e patrimônio cultural, não gostavam de usar seus títulos indiscriminadamente, a não ser em situações como aquela.

Um vereador de oposição ao prefeito Cláudio Fontes, o Cláudio da Chapada, por nome de Felipe Véu de Noiva, porém favorável à construção da rodovia, surgiu e alegou que a empresa de Laércio não seria apta para aquele tipo de estudo. O homem baixo, barbudo, enfiado em terno e gravata apesar de fazer quase 30 graus Celsius de temperatura, que conseguiu seu apelido por alegar em suas campanhas relação direta com a famosa cachoeira, embora todos soubessem que ser invenção, surgiu com um de seus assessores e exigiu que parassem imediatamente com os trabalhos.

Mesmo os pesquisadores apresentando a documentação de sua capacidade, além do contrato de prestação que assinaram junto prefeito, o vereador saiu prometendo retornar com uma ordem de embargo quando eles menos esperassem.

Assim que o revoltoso representante da Câmara de Vereadores da Chapada dos Guimarães se afastou, Rodolfo França, o vulgo França, aproximou-se de Laércio:

— Não se preocupe com ele — disse o intendente da Sinfra tomando cuidado para não altear a voz e ser ouvido pelo vereador antes de este entrar no veículo que o trouxera até o local do EIHC. — Foi voto vencido na votação e ficou furioso. Xingou todo mundo na última reunião e tudo.

— Que votação? — investigou o historiador ainda afetado pela desconfiança de seu profissionalismo.

— Na que decidiu pela construção da estrada aqui — continuou o funcionário público em tom de voz natural, o vereador Felipe Véu de Noiva já se dirigia de volta para a cidade. — A maioria votou a favor da construção da estrada, inclusive ele, mas o vereador Felipe queria a construção imediata. Praticamente só ele achou isso. Eu não quero fazer fofoca nem nada — continuou França —, mas dizem pela cidade que a família da esposa do vereador é a dona da Infra Chapada, a empreiteira que sempre vence as licitações aqui do município…

Laércio ouviu atentamente o relato do intendente. No entanto, ao contrário do que sugeriu o funcionário público, aquilo o preocupava, com certeza. Se fosse verdade que havia uma empreiteira interessada na construção da estrada, uma que considerasse um Estudo de Impacto Histórico e Cultural um atraso para seu faturamento, eles teriam muitos problemas para prosseguirem com a pesquisa.

O sítio demarcado pelos pesquisadores estendia-se por mais de cinco quilômetros de comprimento e quase dois de largura, totalizando uma área entre oito e nove milhões de metros quadrados. Para facilitar e agilizar a prospecção inicial, com a utilização de um GPS, essa vasta extensão foi dividida em 12 grandes áreas de amostragem, que receberam nove subdivisões cada, denominados setores, reduzidos ainda mais em nove quadrantes com pouco mais de 330 metros de lado cada setor. Em cada um desses quadrantes, foram posicionadas bandeirolas para marcar onde seriam feitos os furos de prospecção com profundidade variando entre 80 centímetros e dois metros.

A princípio, apenas 12 sondagens de prospecção seriam realizadas por quadrante. Caso a análise dos vestígios encontrados em cada uma dessas sondagens apresentasse vestígios arqueológicos, novos pontos de sondagem ou mesmo a abertura de trincheiras seriam necessárias.

O incansável trabalho de fincar estacas, colocar placas e plaquetas com as indicações de áreas, setores e quadrantes, esticar cordas e posicionar cada bandeirola onde as sondagens aconteceriam ao longo da semana levaria o dia todo. Combinado com França e os trabalhadores da Sinfra, contudo, não pararam para o almoço e, com isso, concluíram as demarcações por volta das 16 horas. A exaustão estava estampada nas feições de cada um presente no sítio.

Encerrados os trabalhos no sítio, Laércio e Jair decidiram ajudar Marlene com os arquivos e registros do local do EIHC. A historiadora encontrava-se em uma das mesas do arquivo público municipal com uma pilha de documentos. Realizava anotações em um caderno com unicórnios coloridos na capa quando eles entraram.

— Achei que já tivesse acabado, irmã — provocou Jair ao se aproximar da mesa de trabalho de Marlene —, mas vejo que mal começou.

— Ah, são vocês? — assustou-se a pesquisadora. — Achei que fosse aquele vereador de novo.

— O quê? — ironizou Jair beijando o topo da cabeça de Marlene. — O Véu de Noiva passou por aqui também?

— Parece que esse sujeito vai ser um problema — avisou Laércio sentando-se ao lado de Marlene, Jair fez o mesmo na cadeira do outro lado da irmã. — O que descobriu?

— Além da falta de artigos sérios sobre o lugar? — disse a desanimada Marlene após um suspiro. — Nada de útil. Mas… — acrescentou ela buscando em meio aos papeis um em específico. — Segundo os documentos mais antigos, aquela área deveria pertencer aos Nambiquara.

— Deveria? — estranhou Laércio. — Não é mais, por quê?

— Parece que dez anos atrás a Câmara aprovou uma lei de desapropriação da terra para usos futuros do município — esclareceu a pesquisadora. — Advinha de quem foi a PL?

— Felipe Véu de Noiva — respondeu Jair preocupado com tal revelação.

— O próprio.

— E de quem é aquela terra agora? — emendou Laércio tentando juntar as informações. E o resultado não o agradava.

— Ao município — acrescentou Marlene, agora conferindo as anotações em seu caderno de unicórnios coloridos. — Espera que tem mais: uma empresa local chamada Infra Chapada Construções S.A. vem há anos tentando comprar a terra para construir um resort ou algo assim.

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