Capítulo 1: O telefonema

O Repórter

O terceiro dia de Tom Gomes na casa de repouso foi como o anterior, levantou antes de o funcionário que cuidava do café da manhã chegar e sentou-se para ver o nascer do sol. O astro parecia preguiçoso aquela manhã. E a nostalgia do tempo em que não tinha tempo para cuidar de como o sol surgia ou deixava de surgir tomou conta dele.

Os primeiros raios rasgavam o horizonte quando Chiquinha, uma de suas companheiras de casa, surgiu de seu quarto e se sentou diante dele. O “bom dia” da jovem senhora lhe soou cansado, porém gentil. Sua resposta, no entanto, não passou de um aceno com a cabeça. Embora Chiquinha o olhasse com curiosidade, provavelmente quisesse distrair a manhã preguiçosa com o velho e pontual diálogo, Tom desviou o olhar para a pequena tela que trazia na mão.

Sim, Tom tinha um smartphone. Diferente da maioria de seus companheiros de repouso que mal sabia usar um celular comum, Tom precisou aprender, e bem, a usar não só o telefone, como também a internet e, para seu desgosto, as redes sociais. Tudo porque sua profissão mudara para esse tipo de sistema. Quando ele começou, no final dos anos 1980, o papel reinava. Claro que a televisão chamava a atenção de muitos, mas o velho jornal de papel adorava passear de mãos dadas com boa parte da população. E muitas das notícias lidas em Tangará da Serra naquela época foram escritas por ele.

O velho repórter lia as notícias com desdém. Achava a nova forma de escrever muito chamativa e pouco informativa, como se o jornalismo não fosse mais para noticiar, mas sim para manter as pessoas lendo. No seu tempo a concorrência era os tele ou radio jornais, agora, além dos sites de notícias, o tal o Youtube trazia os acontecimentos muito rápido. O problema? Tom sentia o cheiro daquilo à distância. Era a quantidade de sensacionalismos, ou mentiras, que reinavam na tela de seu smartphone.

— Meu neto tem um troço igual esse daí — disse Chiquinha, em mais uma tentativa de puxar conversa. — Ele me deixa ver aqueles programas de culinária sempre que vem me ver. Aliás, hoje é dia de ele me visitar, eu posso apresentar ele para você se…

O celular de Tom tocou o som dos velhos telefones, interrompendo Chiquinha, que abaixou a cabeça em vergonha, depois voltou a olhar o sol que lutava entre a vegetação para ficar acima do horizonte.

— Tom Gomes — atendeu, após três tentativas de mover o pequeno e irritante fone verde para o lado, da forma como fez a vida inteira.

— Tom? — perguntou uma voz empolgada do outro lado da linha. — Aqui é o Lázaro Silva. Você foi meu editor no Tribuna da Serra no início de minha carreira. Lembra de mim?

— Como não? — assentiu o velho repórter, puxando na memória informações que atestassem tal fato. — Fiquei sabendo que tem um jornal agora…

— Site de notícias — corrigiu prontamente o repórter digital, não gostava da comparação com um jornal, nem prédio ele tinha, fazia tudo sozinho e ganhava o pão de cada dia por meio de anúncios em sua plataforma online…

— Ah sim — titubeou Tom, para ele não havia diferença, um jornal dá notícias, e era isso que o site Tangará Informa fazia. — Posso ajudá-lo em alguma coisa, Lázaro? Ou ligou apenas para saber como esse velho está?

— Desculpa minha falta de noção, Tom — disse o repórter, constrangido, a voz falha até. — Como você está? Fiquei sabendo que sua filha colocou você no asilo. Eu sinto muito, amigo…

— Do que precisa, Lázaro? — cortou-o Tom. Aline, sua filha, não fez por mal. Ela ainda é jovem, ele que foi pai muito velho. Não iria condená-la ao fardo que ele se tornava para ela. E tinha a faculdade. O cursinho era caro, ele a ajudou pagar, mas agora ela passou, precisava estudar, ter uma carreira…

— Da sua consultoria em um caso — afirmou Lázaro, relutante; ainda envergonhado por sua falta de educação.

— Essa é nova! — surpreendeu-se o jornalista aposentado, assustando Chiquinha que ouvia aquela conversa atentamente. Tom chegara três dias atrás e era um verdadeiro mistério para todos na casa de repouso. — Daria uma ótima chamada: “Velho de asilo ajuda repórter a escrever uma notícia.”

— Lembra do Luiz da Gasolina? — emendou, enfático.

— O que foi prefeito, vereador, se candidatou duas vezes para deputado? O que tem ele?

— Foi encontrado em seu escritório no estilo Getúlio Vargas, com carta e tudo.

— E qual o problema? — duvidou Tom, o tal Luiz da Gasolina sempre esteve envolvido nos mais grotescos casos de corrupção e desvio de dinheiro público; adorava chamar a atenção. Matar-se não seria somente mais uma forma de ser o centro das fofocas?

— Pode ser que ele não tenha se matado.

— Por que acha isso? Leu a carta?

— Viu? Já está me ajudando — provocou Lázaro após uma gargalhada breve. — Li sim. Graças ao que me ensinou: um bom repórter é feito de boas fontes. Mas não por causa dela que esse caso levanta essa suspeita.

— Então? — insistiu o velho, um pouco impaciente. — Não faz suspense, garoto! Está falando com um velho que tem pressão alta.

— A arma que ele usou para… você sabe: POU. Acharam ela uns três metros do corpo; a janela estava destrancada… a porta não. Ela estava bem trancada… por dentro.

— Você tem uma ótima matéria aí — avaliou Tom, em um suspiro triste. — Por que precisa desse velho?

— Quero descobrir o que realmente aconteceu — afirmou Lázaro, quase empolgado demais para o gosto de Tom.

— Por que não deixa a polícia fazer isso?

— Arquivaram! — exclamou, triunfante. — Preferiram concluir que ele se matou… e se foram.

— Investigaram?

— Segundo minha fonte, apenas chegaram lá para registrar o boletim. Nem a perícia acionaram.

— Novamente: o que quer que eu faça, Lázaro? — reclamou Tom, já cansado daquela conversa, certo de que seu tempo de investigações havia acabado. — Não posso te ajudar muito de onde estou, posso?

— Falei com a Aline — disse o antigo aprendiz, sério. — Ela concordou que você fique na minha casa por um tempo… Até um enfermeiro eu precisei contratar…

— Não preciso de enfermeiro nenhum.

— Desculpa, amigo, ordem da patroa.

Lázaro chegou à casa de repouso por volta das nove da manhã. Tom Gomes já estava com as malas prontas e o aguardava sentado no mesmo banco onde atendera sua ligação horas antes. Lázaro sentou-se ao lado do antigo patrão.

Embora o jornalista estivesse longe de precisar se hospedar em um ambiente como aquele, já passava dos cinquenta anos, o bigode que cuidava diariamente já tinha mais fios brancos do que pretos. A cabeça não estava tão diferente, pelo menos no entorno, pois há muito ele deixara de usar topete.

— Está pronto? — perguntou após um tempo de silêncio. Naquele horário, os bancos da área de descanso foram tomados por homens e mulheres de todos os tons de pele, muitos em cadeiras de roda ou acariciando a necessária bengala.

 — Está mesmo certo do que está fazendo, Lázaro?

— Se é para cutucar a onça com vara curta — afirmou o jornalista com um sorriso malicioso — que seja com o melhor.

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