O tempo, o país e o espelho da condição humana

Machado de Assis: literatura para além do tempo e do lugar

O que faz de Machado de Assis um escritor clássico não é apenas sua genialidade literária, mas a maneira como sua obra escapa aos rótulos fáceis. Engajado ou neutro? Conservador ou crítico? Nacional ou universal? A força de sua escrita reside, justamente, em complexificar essas dicotomias.

Poucos escritores souberam descrever o Brasil e, ao mesmo tempo, escapar de suas amarras como Machado de Assis. Falar dele é falar de um paradoxo vivo: o autor negro e mulato, nascido em um país escravocrata, que ascendeu a um dos maiores nomes da literatura universal; o funcionário público discreto que construiu, em silêncio, uma das mais contundentes críticas sociais da literatura brasileira; o cronista de costumes da elite fluminense que, com ironia cirúrgica, desvelou os grilhões mais profundos da alma humana.

Durante décadas, críticos tentaram rotulá-lo: teria sido ausente, omisso, frio diante das mazelas de seu tempo. José do Patrocínio o acusava de indiferente à luta abolicionista, Sílvio Romero negava-lhe imaginação, e até mesmo admiradores como Lúcia Miguel Pereira viam em sua ficção o reflexo de uma personalidade fechada, distante, quase apática. Mas Machado, como suas obras, nunca foi uma superfície fácil de ler. O que parecia silêncio era estratégia. O que soava como neutralidade era disfarce. A denúncia, quando vinha, era envolta em camadas de ironia, sutileza e profundidade.

Machado não subia a palanques. Não escrevia panfletos. Preferia fábulas cruéis. Como em “Pai contra mãe”, conto em que um homem branco e pobre escolhe condenar uma escrava grávida à morte do próprio filho para salvar o seu. Não há juízo moral explícito no texto — mas há uma frieza que grita. A estrutura da sociedade brasileira está toda ali: a escravidão como sistema econômico, a miséria como justificativa moral, a maternidade como campo de batalha. O gesto do protagonista é, ao mesmo tempo, individual e coletivo, humano e monstruoso. É o Brasil inteiro, em silêncio, assistindo ao aborto de Arminda enquanto celebra a sobrevivência de Candinho.

Em “O espelho”, outro conto antológico, Machado revela como o sujeito é forjado pela imagem que o outro projeta. O jovem Jacobina só se reconhece ao vestir a farda de alferes, símbolo de prestígio social. Quando os escravos fogem e ele se vê sozinho, a alma que lhe resta é vazia. Não é mais ninguém. É sombra de sombra. Só recupera o próprio reflexo ao vestir novamente o uniforme — num gesto desesperado de identidade fabricada. O conto pode ser lido como crítica ao regime escravocrata? Sim. Mas também como reflexão sobre o papel, a máscara, o poder e o narcisismo — temas que continuam a nos atravessar com incômoda atualidade.

Há também o Brás Cubas, que em sua autobiografia póstuma confessa, com regozijo cínico, ter usado Prudêncio como cavalo na infância. Mais tarde, vê o mesmo Prudêncio, agora liberto, espancando outro escravo com o mesmo desprezo. O ciclo da violência se completa. Não há heróis nem mártires. Apenas homens, repetindo o que aprenderam, pagando com juros a humilhação recebida. É nessa cadeia de heranças — morais, sociais, humanas — que Machado finca sua pena. Uma pena sem sentimentalismo, mas impregnada de lucidez.

Dizer que Machado de Assis foi indiferente à realidade brasileira é ignorar a potência com que ele a sublimou em literatura. Sua crítica não era apenas social; era existencial. Ele não escreveu sobre o negro, o branco, o senhor ou o escravo — escreveu sobre o ser humano, esse animal contraditório que subjuga e é subjugado, que ama e oprime, que nega e reproduz as violências de que foi vítima. Ao tratar da escravidão, Machado não fez da literatura um instrumento de denúncia explícita. Fez dela um espelho, em que o leitor vê refletido o horror que habita o cotidiano naturalizado.

E é justamente esse espelho que continua nos perturbando. Machado não conforta, não ensina, não promete redenção. Ele apenas mostra. E, ao mostrar, obriga-nos a olhar. Como escreveu Antonio Candido, suas obras não têm função edificante ou moralista, mas “humanizam em sentido profundo”. Porque quem lê Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba ou Dom Casmurro com os olhos abertos não sai ileso. Sai mais cético, talvez. Mais inquieto. E, por isso mesmo, mais humano.

Machado de Assis não pertence apenas ao século XIX. Nem apenas ao Brasil. Ele pertence ao território raro dos grandes escritores que atravessam o tempo e o espaço. Sua literatura, ambígua e precisa, não se deixa capturar por nenhuma ideologia — mas ilumina todas. Como um autor bifronte, ele olha para trás e para diante, interpretando o presente com ironia implacável e uma compaixão que se esconde por trás do sarcasmo. É essa complexidade que garante sua permanência. Porque Machado não explicou o Brasil. Ele o expôs. Não gritou suas causas — sussurrou suas tragédias. E, por isso, seguimos ouvindo sua voz, mais viva do que nunca, entre as páginas de uma literatura que não se contenta com verdades fáceis.

Referências de leitura que inspiraram esta matéria:

Este texto foi inspirado pelas reflexões do artigo “Machado de Assis: um escritor além de seu tempo e de seu país”, de Juracy Assmann Saraiva e Marinês Andrea Kunz, publicado na revista ellipsis (nº 8, 2010), além de leituras complementares de estudiosos que têm se debruçado sobre a obra de Machado, como Antonio Candido, Roberto Schwarz, Eduardo de Assis Duarte, Sidney Chalhoub e Brito Broca. Também são referências fundamentais as edições críticas dos contos e romances do autor, especialmente Memórias Póstumas de Brás Cubas e Pai contra mãe, que seguem revelando a atualidade pungente do mestre do Realismo brasileiro.

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